Você sabia que antigas histórias sugerem que o Deus de Israel teve uma parceira divina e juntos teriam filhos? Essa ideia, presente em mitologias de várias culturas, lembra os deuses da antiga Suméria, que também formavam pares e criavam descendentes.
Neste post, vamos explorar essas conexões, falar sobre o filho esquecido e entender por que a suposta esposa divina desapareceu das tradições judaico-cristãs.
Qual é a origem dos povos semitas?

É impossível falar do Deus dos judeus sem explicar a origem das tribos semíticas conforme apontadas no Bereshit (O Livro de Gênesis).
Em resumo, Noé teve três filhos: Cam, Jafé e Sem. Os descendentes de Cam estabeleceram-se em Canaã, no Egito e na África; os descendentes de Jafé estabeleceram-se na Europa e Ásia Menor; e os descendentes de Sem se espalharam pelo Oriente-Médio.
Ou seja, os povos semitas são descendentes de Sem, um dos filhos de Noé. Isso, religiosamente, quer dizer que tanto o judaísmo, como o cristianismo e o islamismo possuem raízes semitas.
Como fonte arqueológica, podemos citar como parentes conhecidos mais antigos dos semitas, os Kebarienses (18.000 até 12.500 a.C.), tribo nômade, composta de caçadores e coletores nas áreas do Levante e Sinai e que usavam ferramentas microlíticas.
Além deles, como destaque haviam os Natufianos, povo que dependia de caçar e coletar alimentos, tinham seus próprios rituais e viveram entre 13.050 até 7.550 a.C..
Avançando no tempo, entre os antigos e mais relevantes povos semitas estão os Fenícios, Israelitas, Edomitas, Amalequitas, Moabitas, Amoritas, Acadianos, Assírios, Sírios, Cananeus, Caldeus, Arameus, Árabes e Hicsos.
Já no aspecto cultural, podemos apontar como idiomas semitas: acadiano, eblaita, ugarítico, fenício, hebraico, aramaico, árabe, etíope, gala, afar-saho, amorita, edomita e caldeu.
Percebe-se que os povos semitas são uma grande salada de frutas, um imenso caldeirão de culturas diferentes que se misturavam entre si. Cada um com seu grupo de divindades que influenciavam e recebiam influências de seus vizinhos.
Agora que você já adentrou no contexto, vamos falar diretamente de religião.
Os judeus não eram tão monoteístas assim como contam

Os semitas não eram monoteístas. Sim, você não leu errado, os semitas contavam com mais de 5 mil deuses, ou seja, eles eram politeístas. O conceito de monoteísmo é historicamente recente na cultura semita.
Com um olhar anacrônico, é fácil de entender o motivo na qual as pessoas mais leigas no assunto achem que tudo começou com o pai dos hebreus. Quem mais iniciaria o monoteísmo senão os judeus?
Mas o monoteísmo não era a prática apontada como a única via conforme a visão abraâmica. Abraão e seus contemporâneos eram henoteístas.
Monoteísmo | Henoteísmo |
Adorar o Deus como a única divindade existente | Adorar um Deus entre muitos outros |
Os antigos hebreus não adoravam um Deus que eles consideravam ser a única divindade existente, mas simplesmente um Deus entre muitos, o mais forte, o mais poderoso, o mais “útil” do que os outros deuses “menores” adorados por outras tribos, mas que, no entanto, dividiam o palco.
Esta perspectiva essencialmente politeísta concorda com a menção frequente de outros deuses na Torá (Antigo Testamento), por exemplo. Também corresponde como a fé de Abraão soa como um arranjo contratual. De certa forma, Abraão é um exímio negociador.
Uma forma ainda mais simples de se entender o henoteísmo hebraico é por meio do segundo mandamento judaico:
2º mandamento dado a Moisés no Monte Sinai (em Hebraico) | 2º mandamento dado a Moisés no Monte Sinai (em Português) |
לא יהיה־לך אלהים אחרים על־פני | Não haverá nenhum outro Deus diante de mim |
E por falar em Moisés, dentre um imenso panteão de deuses canaanitas, ele escolheu Yahweh, o Deus das Tempestades. Esta divindade passa a integrar o contexto israelita sem contudo negar a existência e diversidade de outras divindades.
Yahweh, o Deus dos Queneus

De acordo com o pesquisador Haroldo Reimer, o momento histórico marcante, em que Yahweh vai se constituindo como Deus único de Israel é somente durante o século V a.C., provocando um processo de diabolização de outras divindades. Ou seja, o meu Deus é o único e verdadeiro e o malvadão são os deuses dos outros.
O próprio Yahweh é considerado por estudiosos como uma divindade sincrética, não sendo nativo da região de Canaã. Originalmente seria a deidade midianita “Yaouai” (de Midiã, região do noroeste da Península Arábica, na costa leste do Golfo de Aqaba, no Mar Vermelho) influenciada pelo enredo de um passado divino egípcio “Adon”, regredindo ao deus sumério “Enlil” e regredindo ainda mais no deus mesopotâmico “Ilu Kurgal”.
A hipótese mais provável é que Yahweh tenha ido para Israel “de carona” com os Queneus por meio das rotas das caravanas entre Midiã, Egito e Canaã.
Inclusive Jetro, o sacerdote de Midiã e sogro de Moisés, era Queneu. Os Queneus eram culturalmente mais avançados que os hebreus, por isso tiveram um papel muito importante na formação da religião judaica.
Se você leu o artigo sobre a origem do Judaísmo, já sacou que Moisés foi quem importou esta divindade durante a fuga dos hebreus do Egito e criou uma super deidade misturando diferentes contextos.
Mas, afinal de contas, quem era o Deus cananeu?
O Deus dos judeus tinha uma companheira

É importante saber que a região de Canaã nunca contou com a ausência total de tribos hebraicas, mesmo com a primeira diáspora, sempre houve, mesmo que em minoria, uma população de hebreus.
Isso fez com que muito da tradição pudesse ser mantida e muito dos novos valores vindos do exterior pudessem ser rapidamente assimilados pela cultura mosaica.
Mas vamos ao que interessa, antes de Yahweh, quem era o “manda-chuva”?
O antigo Deus de Israel era conhecido como “El” (Senhor), cuja origem remonta ao sumério Enlil. Em sua forma mais primitiva, também era chamado de El Shaddai, onde “shad” significa “montanha”, ou seja, “Senhor da Montanha”. Esse título tem raízes no mesopotâmico primitivo, onde a divindade era referida como Ilu Kurgal, que também significa “Senhor da Montanha”.
Nos antigos textos sírios de Ras Shamra, El era descrito como o chefe titular do panteão, conhecido como “O Criador” e “Possuidor do Céu e da Terra”.
Ele era geralmente retratado como um homem velho numa montanha com uma longa barba e, muitas vezes, duas asas. Ele era o equivalente ao todo-poderoso hurrita Kumarbi e ao líder dos titãs, Cronos.
Mas El não reinava sozinho, ele tinha esposa e filhos, que eram fundamentais na mitologia semítica. De acordo com a fonte ugarítica, o seu principal e mais poderoso filho era Baal e a deusa que dividia o mesmo espaço com El era Aserá.
Baal era visto como um Deus da fertilidade, mais tarde substituiria seu pai como deus principal dos cananeus e, por volta do século IX, seria transformado em demônio por conta da rivalidade com Yahweh.
A importância destes outros dois deuses para os judeus era tamanha que haviam utensílios feitos exclusivamente tanto para Baal quanto para Aserá dentro do Templo de Jerusalém.
A existência destas peças é confirmada na reforma de Josias, que obriga a sua remoção, assim como a destruição das cabanas e santuários para Aserá, visando a exigência da adoração exclusiva em Yahveh.
A Deusa: Aserá de Israel (Elat)

As primeiras evidências de Aserá aparecem em textos babilônicos (1830-1531 a.C.) e nas cartas de El Armana (século XIV a.C.).
Mas as informações mais reveladoras sobre Aserá vêm dos textos ugaríticos de Ras Shamra. Nestes textos, Aserá é consorte de El, o principal deus do panteão cananeu no segundo milênio a.C., sendo mencionada também como “Elat, a forma feminina de El”.
Ou seja, é a outra parte de El e representa a dualidade e perfeição, o sexo e o amor. El sem Elat é como o arroz sem feijão, nitidamente eles se complementam simbolicamente.
Aserá é mencionada cerca de 40 vezes no Antigo Testamento, de três formas diferentes, ora como uma imagem que representa a própria deusa, ora como “uma árvore” ou como um “tronco de árvore”.
Fora do âmbito canônico, em outras representações, dependendo do contexto, ela pode ser representada como um triângulo púbico, uma mulher nua, árvores, uma personagem acompanhada de cabras de longos chifres ou ainda acompanhada de leões.
Em 1934, o arqueólogo britânico James Starkey encontrou o Jarro de Lachish, datado aproximadamente em 1.220 a.C.. Na decoração do jarro, há o desenho de uma árvore flanqueada por duas cabras com longos chifres para trás, que representa Aserá. Uma inscrição que segue pela borda do jarro diz em alfabeto semítico: “Um oferecimento para minha senhora Elat”.
Como Elat está escrito logo acima da árvore, é possível afirmar que este jarro e seu conteúdo foram uma oferenda à antiga e cultuada deusa dos hebreus.
Aserá também se fez presente em altares por toda Jerusalém, como no Templo de Arad, em túmulos judaicos, no túmulo do Faraó Tutemés III e na mitologia egípcia sincretizada como Qetesh.
O culto à Aserá e sua queda

O culto da deusa Aserá era feito, principalmente, em torno de uma árvore natural ou estilizada, ou seja, de um poste sagrado que podia estar ao lado de um altar seu ou de uma outra divindade, inclusive Yahweh.
Seus santuários costumavam ficar no topo das colinas e montanhas. Mesmo assim era comum ter uma imagem sua ou representação dentro de templos, como o Templo de Jerusalém. Aserá também era representada por árvores colocadas nos pátios dos templos.
Com o passar do tempo, houve um desequilíbrio de gênero na religião hebraica. Cada vez mais, Aserá era perseguida e o culto se limitava na adoração dentro de casa, sendo suas ofertas realizadas pelas mulheres.
“Há já muito tempo, tu quebraste o meu jugo e desprendeste as cadeias que te prendiam, mas não quiseste obedecer-me. No cimo de cada outeiro, debaixo de cada árvore frondosa te entregaste a algum culto de prostituição.”
Jeremias 2:20
Oseias, Jeremias e Ezequiel culpam Aserá por deixarem Yahweh “ciumento”, e citam seu ciúme como a razão pela qual ele permitiu a destruição de Jerusalém.
Entenda que Qadishtu eram as sacerdotisas e sacerdotes responsáveis pelo ato mais sagrado de todos, o momento da criação, da santificação, dos ritos sexuais, da fertilidade.
Infelizmente, a religião hebraica, assim como a fé de outras tribos do Oriente Médio, foi profanada se transformando em produtos fúteis da superstição humana em vez de filosofia. É por isso que livros sagrados, como a Bíblia, associam de forma frequente e graficamente as deusas à prostituição.
A dominação patriarcal se fez nesse contexto, assim Yahweh seguiu como símbolo de domínio do masculino no sagrado culminando numa forte ferramenta de controle social, econômico, religioso e político.
A religião oficial israelita absorveu então uma identidade somente masculina pelos escritores do Antigo Testamento, onde o feminino passou a ser algo escondido, sujo e profano.
Pode-se ver o reflexo disso nas religiões influenciadas pelo judaísmo, como o cristianismo. Precisamos rever esta questão e reverter este triste quadro devolvendo às mulheres o seu espaço no sagrado que lhes foi tirado.
Conteúdos relacionados:
- Museus: os templos das musas gregas - 31/01/2025
- Por que a Acácia é um símbolo da Maçonaria? - 16/01/2025
- O que a Maçonaria tem a ver com a ida do Homem à Lua? Tudo! - 15/01/2025