A história do dilúvio aparece em muitas mitologias de todo o mundo, do Oriente ao Ocidente. E aqui no Brasil não é diferente! Descubra mais sobre as diferentes histórias de dilúvio que existem em todo o mundo, incluindo a incrível história de um dilúvio que faz parte da cultura de um dos grupos indígenas mais importantes do Brasil.
O dilúvio hindu

Começamos pela história de dilúvio contida nas Puranas do hinduísmo.
Especificamente no Shatápatha bráhmana, o texto que descreve os rituais e a mitologia associados ao Shukla Yajurveda. A obra foi escrita por Yajnavalkya, o “pai da filosofia indiana”. Descrito como o mais completo, sistemático e importante dos comentários sobre os Vedas, ele contém explicações detalhadas dos rituais de sacrifício védico, simbolismo e mitologia.
É uma das primeiras obras que contém conhecimentos científicos de geometria (por exemplo, cálculos de pi e a raiz do teorema de Pitágoras) e astronomia observacional (por exemplo, distâncias planetárias e o afirmação de que a Terra é redonda).
Mas como estamos falando especificamente de dilúvio neste artigo, vamos ao que interessa, na obra, Matsya, que nada mais era que o deus Vishnu transformado num avatar de peixe, aparece para Manu para avisá-lo sobre um dilúvio que estaria por vir e que ele deveria construir um barco para se proteger e proteger o conhecimento do mundo levando consigo os Vedas submersos roubados de Brahma.
Depois de ser criado e crescer até um tamanho enorme, Matsya então guia o barco de Manu para a segurança no pico de uma montanha, onde Manu restabelece a vida por meio da realização de ritos de Yajna (sacrifício védicos).
Confira abaixo como esta história foi escrita, em sânscrito e traduzido para o português:
Transliteração do Kanda I, Adhyaya VIII, Brahmana I, Versículos 1-4 |
manave ha vai prātaḥ | avanegyamudakamājahruryathedam pāṇibhyāmavanejanāyāharantyevaṃ tasyāvanenijānasya matsyaḥ pāṇī āpede sa hāsmai vācamuvāda | bibhṛhi mā pārayiṣyāmi tveti kasmānmā pārayiṣyasītyaugha imāḥ sarvāḥ prajā nirvoḍhā tatastvā pārayitāsmīti kathaṃ te bhṛtiriti sa hovāca | yāvadvai kṣullakā bhavāmo bahvī vai nastāvannāṣṭrā bhavatyuta matsya eva matsyaṃ gilati kumbhyām māgre bibharāsi sa yadā tāmativardhā atha karṣūṃ khātvā tasyām mā bibharāsi sa yadā tāmativardhā atha mā samudramabhyavaharāsi tarhi vā atināṣṭro bhavitāsmīti śaśvaddha kaṣa āsa | sa hi jyeṣṭhaṃ vardhate ‘thetithīṃ samāṃ tadaugha āgantā tanmā nāvamupakalpyopāsāsai sa augha utthite nāvamāpadyāsai tatastvā pārayitāsmīti |
Tradução livre em português |
Quando estava se lavando, um peixe caiu em suas mãos. Ele lhe disse: ‘Cria-me, e te salvarei!’. ‘De onde queres me salvar?’, perguntou Manu. O peixe respondeu: ‘Uma inundação levará todas essas criaturas: disso eu te salvarei!’. E complementou: ‘Enquanto formos pequenos, haverá grande destruição para nós: os peixes devoram os peixes. Tu primeiro me manterás em uma jarra. Quando eu não couber mais na jarra, tu me levarás ao mar, pois então serei gigante e estarei além da destruição dos mares. ‘ Logo se tornou um ghasha (um grande peixe); pois esse é o maior de todos os peixes. Em seguida, ele disse, ‘Aquela enchente virá. Deverás então atender ao meu conselho preparando um barco; e quando o dilúvio subir, entrarás no barco e eu te salvarei dele.’ |
O professor e pesquisador Narayan Aiyangar, numa das melhores obras sobre o estudo simbólico do hinduísmo, Essays On Indo-Aryan Mythology, explica que o barco é uma metáfora para sacrifício e Manu representa um pensador, algo próximo do que entendemos no ocidente como um filósofo.
Ou seja, a história parece ser uma parábola do barco do sacrifício sendo o meio para o homem justo cruzar os mares do pecado rumo à elevação espiritual.
O dilúvio da Mesopotâmia

O dilúvio Mesopotâmio está imortalizado com escrita cuneiforme em tabletes de argila na Epopeia de Gilgamesh.
No épico, o herói Gilgamesh parte em uma série de viagens com o objetivo de encontrar Utnapishtim, o imortal.
E como este artigo não é centrado nas passagens de Gilgamesh, mas na fascinante história de seu ancestral Utnapishtim e seu dilúvio, foquemos nisso agora.
Certo dia, o irado deus Enki apareceu para Utnapishtim (também conhecido com Ziusudra ou Atracasis) e anunciou que um grande dilúvio estava por vir e que ele afogaria toda a maldade deste planeta.
Portanto, Utnapishtim deveria abandonar seus bens materiais e construir um barco gigante a fim de preservar o conhecimento e a vida.
O barco era feito de madeira maciça e o projeto foi supostamente desenhado no solo pelo próprio deus Enki. A estrutura da arca, que foi feita em cinco dias, tinha 200 pés de comprimento, 200 de largura e 200 altura, com um espaço de um acre. O interior da arca tinha 7 andares, cada andar dividido em 9 seções, o barco foi finalizado em 7 dias. A entrada do navio foi lacrada assim que todos embarcaram.
Ele também foi encarregado de trazer sua esposa, família e parentes junto com os artesãos de sua aldeia, animais bebês, animais e grãos.
O dilúvio que se aproximava destruiria todos os animais e pessoas que não estivessem no navio. Após doze dias na água, Utnapishtim abriu a escotilha de seu navio para olhar ao redor e viu as encostas do Monte Nisir, onde parou seu navio por 7 dias.
No sétimo dia, Utnapishtim libertou todos os animais e fez um sacrifício aos deuses. Os deuses vieram, e porque ele preservou a semente do homem enquanto permanecia leal e confiando em seus deuses, Utnapishtim e sua esposa receberam a imortalidade, bem como um lugar entre os deuses.
O registro escrito dos mitos diluvianos

Tudo isso ocorreu há milhares de anos atrás na região de Ur (Terra de Abraão e provável ambiente de inspiração do mito judaico-cristão do dilúvio) e Uruk (origem do nome Iraque). É uma lenda impossível de ser precisamente datada, em função de ter sido uma tradição inicialmente oral.
Mas é possível saber que com o surgimento da escrita na região, elas floresceram e ganharam ainda mais popularidade. Como as grandes cidades da Mesopotâmia eram os principais eixos comerciais e econômicos de seu tempo. Gente de todas as regiões iam até lá para fazer comércio e levar um pouco da cultura local para casa.
A mesma narrativa foi traduzida, reinventada, recontada e ressignificada em diversas outras religiões e culturas, como a história judaica de Noé que constrói uma arca com sua família e animais para fugir do dilúvio de Yahweh; no Mazdaísmo Zoroastriano, onde Ahriman tenta destruir o mundo com uma seca, mas Mithra termina atirando uma flecha numa rocha e provocando um dilúvio, desta inundação somente um homem se salvaria com seu barco e seus animais; na mitologia grega com Deucalião, filho de Prometeu que constrói um barco para se salvar do dilúvio de Zeus.
Estes são apenas alguns exemplos, também contam com histórias de dilúvio, os povos: egípcios, chineses, japoneses, nórdicos, celtas, lakotas, apaches, aborígenes, maoris, astecas, incas, maias, muíscas, mapuches…
Ou seja, o dilúvio é um mito existente em praticamente todas as culturas. E no Brasil? Existe alguma história bacana de dilúvio entre nossos índios?
Existe sim: A lenda tupi de Maire-monan.
Os dilúvios tupis

Os tupis são povos indígenas que mantêm relação entre si por conta de sua linguagem em comum. Eles saíram há milênios do centro amazônico, expandiram-se ao norte do rio Amazonas, ao sul pelo Paraguai, a leste pelo Tocantins e a oeste pelo rio Madeira. Se nomearam para se distinguir, ao se tornarem grupos diferentes, mesmo sendo descendentes de uma mesma família e compartilham, em essência, dos mesmos mitos, como veremos a seguir.
E sim, você não leu errado, entre os tupis não existe apenas uma história de dilúvio, mas existem dilúvios (no plural). São vários dilúvios que se conectam num enredo fascinante, confira:
O dilúvio de fogo
De acordo com a mitologia tupi, nos primórdios, Monan, criou os animais, as belezas naturais, os ceús e a Terra.
Monan vivia em harmonia com as pessoas, até que um dia se irritou pela falta de bondade e de justiça dos humanos e resolveu enviar um dilúvio de fogo sobre o planeta.
Apenas um homem tinha o coração nobre o suficiente para sobreviver às chamas, Irin-magé, que foi morar nos céus após o acontecido.
Mas se você acha que ele ficou convencido ou que estava tranquilo morando nas alturas, muito pelo contrário! Ele era puro e acreditava na bondade humana. Irin-magé reclamou e conseguiu convencer Monan a apagar o fogo e repovoar o planeta.
O dilúvio das águas
Para apagar o fogo que consumia o planeta, Monan enviou um dilúvio com águas reparadoras. O mundo voltou a ser habitável novamente e Irin-magé desceu dos céus com a missão de ser pai.
Monan criou uma pessoa da espécie feminina para servir de reprodutora para Irin-magé e desta união nasceu o poderoso: Maire-monan.
Como presente de Monan, ele recebeu parte de seus poderes e passou a ser conhecido como uma espécie de feiticeiro.
Tinha a capacidade de criar a matéria: em caso de seca fazia chover, em caso de muitas chuvas, trazia a estiagem, na falta de alimentos, criava novos animais, plantas e ensinava sobre a caça e o plantio.
Mas não demorou e a maldade voltou a habitar o coração vazio dos humanos, alguns resolveram armar para o filho de Irin-magé.
Mairé-monan foi convidado para uma festa e, nela, foi desafiado a pular três fogueiras sem se queimar. Revelando um pouco de vaidade, o semideus tupi aceitou o desafio.
Ele passou ileso pela primeira fogueira, mas na segunda, o fogo o consumiu e fez com que seu corpo mágico explodisse. Os estilhaços de seu cérebro subiram aos céus, originando os trovôes e uma tempestade como nunca visto. O som dos trovões vieram acompanhados de um novo dilúvio, devastador.
O dilúvio final e a guerra dos tupinambás e temininós
Muito tempo depois, haviam dois irmãos: Tamendonare e Ariconte, descendentes de Maire-monan.
Tamendonare era pacífico e cheio de boas intenções, já Ariconte adorava guerras e vivia buscando por conflitos e intrigas. Ele queria escravizar todos os indígenas, inclusive seu irmão.
Os dois viviam brigando, até que, num certo dia, Ariconte invadiu o espaço de seu irmão e atirou ao chão um de seus tesouros, possivelmente um artefato conquistado numa guerra.
Tamendonare ficou tão enfurecido que pisoteou o chão com tamanha força que o rachou. Da rachadura, começou a brotar água que não acabava mais, um verdadeiro e tenebroso dilúvio.
Aterrorizados, cada um dos irmãos pegou suas respectivas esposas e subiram cada qual no topo de duas árvores. Tamendonare numa pindoba e Ariconte num jenipapeiro.
Quando as águas baixaram, os casais desceram e repovoaram novamente o planeta:
- Dos filhos de Tamendonare surgiram os tupinambás;
- Dos filhos de Ariconte surgiram os teminós.
Apesar dos tupinambás e teminós possuírem muitos traços culturais em comum, como a língua, crenças, costumes como o canibalismo ritual e a agricultura de subsistência baseada em queimadas, as duas tribos eram inimigas mortais.
Eram tão rivais que os tupinambás se aliaram aos franceses contra os portugueses durante o período colonial, enquanto os temiminós aliaram-se aos portugueses contra os franceses.
Espero que você tenha aprendido um pouco mais sobre a cultura indígena brasileira e refletido um pouco sobre o simbolismo do dilúvio, independente de sua cultura ou religião.
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